Dos Diários de Londres
- Gabriella Egavalle

- 7 de ago. de 2021
- 4 min de leitura
Se tu queres um amigo, cativa-me!
Dispensaram-me da loja de 'roupas românticas', graças a Deus, muito por bem, que assim vou cantar na rua com o meu camarada D'Anjou. Precisamente sexta-feira à noite, quando a lua estará ejaculando aquários repletos de oxigênio e sabedoria. Cantar O Jogo do Círculo, e Sou Eu Não, Babe.
Antes disso, ontem, detrás daquele balcão ainda, no chato, pisquei os olhos papagaios e assim se foi escrevinhado o esboço dum jantar especial, reunindo espécies queridas de humanos; uma reunião para misturar os conteúdos, os contornos, exalando essa mistura por sobre a santa-ceia e então fica sendo tudo alimento sobrenatural na mesa nossa deles e vossa... — isto tudo se passando no saguão da Aeronau.
Ei-nos:
Todos à mesa, John Fahey assoa o nariz, diz esta aqui se chama Vista... Vista do... Chama Vista Leste do...
Estela do Patrocínio atravessa-o, Vista Leste Oeste Norte Sul é o nosso nome ...do viaduto da ferrovia B&O...
e do cruzamento com a rua Riggs. John põe-se a dedilhar, harpia ou gavião-real americano primitivo, o que faz a Ursula K.l Le Guin, sentada na frente dele, pensar numa Arqueologia do Futuro e em seu velho pai e sorrir só-somente com o canto da boca e anotar qualquer coisa.
Dum outro lado da mesa (quantos há?), quem! — Simone Weil e João Guimarães Rosa conversam baixinho, aquiescência peculiaríssima, sobre-o-quê ninguém-nem-nunca. Enquanto na cabeceira mais distante está Guillaume-en-Egypt, com Chris Marker todo de couro em seu colo, fixando fitamente o diálogo dos outros, auscultando tudo e só de vez em quando assentindo.
O ar passeia veloz pelo salão todo de madeira, toca as vigas das paredes e tira delas como que um som de viola; esse ar entrou foi pelas janelas redondas de cobre, tendo passado pelo meio de nuvens, não alto-mar mas sim sobrevoo. Joni Mitchell pede ao Jonas Mekas um fogo, que tendo numa mão a video-câmera se atrapalha pra meter as duas bolsos, e Clarice Lispector estende também na ponta da sua pata o seu cigarro para ser iluminado. Elas atendidas, ele então discretamente passa a lente pelos rostos-todos, depois aponta-a para o centro da mesa: que temos:
Tagine de carneiro, risotto de beterraba, e nozes várias
e pimentões frescos todas-cores, e cenouras negras e nabos e saquês vários.
Emily Dickinson dissocia completamente –– para o onde. Werner Herzog, delicado, cutuca-a, oferece servi-la d'água (também temos água, no alto de aqui, temos muita), o que ela aceita com gravidade e graça.
John Lurie, cheirando a peixe e saliva velha de saxofone, atirando bolinhas de papel no prato de Joan Baez, Joan meio bêbada, já virando a personalidade de cabeça pra baixo, botando as bolinhas dentro da boca.
Aí gritos gaivotos. (Quem foi?) Um vulto abandona a sala para fazer a ronda, e quando a porta se abre vem do convés uma luz absurda, que cega a todos por alguns minutos um silêncio sem sentidos: espetáculo.
Retornada a visão, um holofote ilógico cai por sobre Annemarie Schwarzenbach olhando a todos cinzeamente. Roberto Bolaño olha-a negramente. Queria... Olhar felino dela rápido flagra isto... Luva dela levanta a taça dela:
Um enfim brinde: à:
Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas cada dia, te sentaras um pouco mais perto...
Agora podemos comer, apreceiados. Hora de vacas, de ruminação pontuada por onomatopéias. Assuntos entremeios, direções todas, mas na delicadeza de não perturbar a atenção da vida do alimento.
Agnès Varda elogia o vestido de estrelas-do-céu de Carolina Maria de Jesus. Carolina Maria agradece com dignidade estelar, passa a falar das montanhas e pastos verdes que avizinham a sua morada.
Ah, eu? como se vê –– dizendo muito sem a palavra dizer, olhando-escrevendo-os, e com le chien terrible no meu colinho, dormindo profundamente.
Tudo bem, tudo bem, tud bem...: o que sinto? perguntou-me a Lua sem perguntar, sentada ao meu lado, só por motivos de critica literária ter observado abstração-secura-impessoalidade observando o que sinto: uma ausência de tentativa, um fazimento somente, por debaixo e por sobre os lençóis, e dentro da trama do tecido. Uma calma. É sentimento isso, pode chamar? Sem racionalizar. Uma calma. Certeza que convive tranquilamente com todas as dúvidas. Fé? Amizade –– digo, laços feitos fundos mas laços que não amarram. Afinidade espiritual desgarrada, relacionamento espontâneo, honra mor na companhia de quem, e recusar para se ser digno de a receber; da categoria da Graça... O que nos une: sermos vários sóis rodando em torno uns dos outros enquanto também giramos.
De repente o deslize duma nota aguda Morte do Pavão de Clayton e outra-porta abre abrupta
Ezra Pound: que trabalhava na cabina acima (discutia com Pier Paolo Pasolini): disse: chih chih
Deixe falar o vento
Todos com-acordam. Rugem as ferrugens da embarcação, rangem os rabos de todos os gatos residentes.
Quem pilota: o camarada Olaudo, um monstro gentil (o meu amigo-imaginário da infância). Pilota em zigue-zagues, mas como isto aqui é só ar e não água, não enjoa-nos.
Poisa no mastro a Secretária: ela manifestou um continente novo. Então lá-vamos...



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